Carta de Amor – 27/03/2023

Querido futuro esposo,

Ontem quando nos despedimos, um do outro e da nossa solteirice, perguntaste-me se no meu coração morava algum arrependimento. Foi em sã consciência que menti ao dizer-te que não.

Ai, se o arrependimento matasse, certamente não estaria aqui. Carrego em mim tantos que não os consigo contar, contudo há um que me pesa tão mais que todos os outros: arrependo-me amargamente de nunca ter amado!

Nunca me permiti amar. Talvez “nunca” seja palavra em demasia. Há uma idade em que não se sabe amar: a palavra amor é oca. Para o amor é preciso dor, um sofrimento atroz que felizmente não chega à maior parte das crianças. Assim, na nossa meninice apenas se usufrui do amor que têm por nós. Choramos no colo da avó, adormecemos no peito da mãe, cavalgamos nas pernas do pai, enfim, um mundo inteiro de amor imerecido e incógnito.

Eis que é chegado o tempo de sermos tomados de amor, daquele que surge de dentro para fora, que cresce nos nossos corações e que de tão colossal, transborda manifestando-se em sorrisos, gargalhadas, andar saltitante e algum rubor na face. Diz quem entende desta arte que o que descrevo é paixão. Pois que seja, no entanto não deixa de ser um “abrir portas” ao amor. E foi isto que senti: borboletas na barriga que se espalharam pelo corpo todo. Adormecia a desejar que a noite passasse depressa para dar lugar ao novo dia, dia esse que seria o cenário perfeito para eu me entregar às emoções. Até que um dia… a minha tia no meu aniversário, perante todas as minhas amigas, reage ao meu abraço com um estaladão na cara por lhe ter sujado o vestido; o primeiro namorado beija-me à força e enfia as mãos pela minha t-shirt adentro apalpando-me violentamente; a minha mãe dá à luz um bebé de 9 meses grande e perfeito, porém morto; chove torrencialmente e nas ruas forma-se um rio furioso que ameaça todas as casas da aldeia e faz a minha avó chorar enquanto reza e tira fervorosamente com um baldinho a água que entra pela porta principal; há uma explosão na fábrica que fica atrás da casa dos meus avós e da varanda vejo homens em chamas a saltar lá de cima, pois que mais vale matar o corpo no embate que o deixar devorar pelas chamas.

De todas as vezes, machucou-se-me a pele, destroçou-se-me o coração.

Decidi não voltar a entregar-me a qualquer sentimento. Bom ou mau, nada interfere com o meu equilíbrio e estabilidade. Arrependo-me de abraçar esta resolução que me sentenciou à perpétua ausência de amor.

Agora que sabes, responde-me tu: teria sido melhor o engano ou ainda assim queres embarcar nesta viagem comigo?

Amélia

Carta de Amor – 07/10/2022

Este lugar é mágico.

Gostaria de partilhar convosco um pedacinho deste mundo encantado. Conseguem vê-lo? Sim? Agora, gostaria de vos convidar a senti-lo.

Quando consigo transportar-me para dentro dele, encontro um mundo inteiro repleto de coisas boas. Apenas e só coisas boas e belas. Muita luz, muita cor, muito brilho. Tudo é claro e luminoso, nítido, cintilante… radioso! Aqui encontro diversão aos montes e deparo-me com uma imensidão de alegria, contudo, apesar de ser grande a exaltação, aqui é igualmente sítio de calma e tranquilidade. Na verdade, aqui é também lugar de paz, uma paz que excede todo o entendimento. Neste lugar mágico só se pode ser feliz!!!!

Eis que chega o momento de partir. Porém, demoro-me neste mundo. Sinto-lhe o peso e a robustez e repentinamente percebo que se tiver que ser, ele também ganha forma e jeito de arma de arremesso. Talvez quem sabe, com ele possa partir o coração a alguém.

Leonor

Carta de Amor – 19/05/2022

A minha mão envelhecida segura o corrimão com a força e a vontade de quem se agarra à vida. Neste preciso momento começa uma viagem que não quero fazer. Quem quer ir para o calabouço? Quem se dispõem de livre e espontânea vontade a ser enterrado vivo?

Fugiu-me o tempo por entre os dias que vivi apressada e agora, agora que tenho mais vagar, não me restam mais dias daqueles repletos de coisas para fazer. Sei que doravante, o relógio que corria incessantemente, abrandará o ritmo dos seus ponteiros fazendo-me aguardar a morte da maneira mais lenta e dolorosa que conseguir. Sim, é a vingança do tempo, que nos últimos 75 anos se sentiu espezinhado e desprezado por mim, a dar um ar da sua graça e a exigir de volta o respeito que merece.

Percebo agora que corri tanto, labutei tanto, fiz tanto que não desfrutei de cada ocasião. Reconheço que nem me recordo da maior parte das coisas que construí, contudo sei que foram muitas, imensas, demasiadas. De tal forma excessivas que tenho a plena consciência que dei muito pouco. Amor, faltou-me dar todo o amor possível a quem amei. É por este motivo que não quero soltar o corrimão, pois sei que quando o fizer e partir nesta viagem, não mais voltarei a esta casa, a esta vida. Não mais voltarei ao amor.

Matilde