Carta de Amor – 19/05/2022

A minha mão envelhecida segura o corrimão com a força e a vontade de quem se agarra à vida. Neste preciso momento começa uma viagem que não quero fazer. Quem quer ir para o calabouço? Quem se dispõem de livre e espontânea vontade a ser enterrado vivo?

Fugiu-me o tempo por entre os dias que vivi apressada e agora, agora que tenho mais vagar, não me restam mais dias daqueles repletos de coisas para fazer. Sei que doravante, o relógio que corria incessantemente, abrandará o ritmo dos seus ponteiros fazendo-me aguardar a morte da maneira mais lenta e dolorosa que conseguir. Sim, é a vingança do tempo, que nos últimos 75 anos se sentiu espezinhado e desprezado por mim, a dar um ar da sua graça e a exigir de volta o respeito que merece.

Percebo agora que corri tanto, labutei tanto, fiz tanto que não desfrutei de cada ocasião. Reconheço que nem me recordo da maior parte das coisas que construí, contudo sei que foram muitas, imensas, demasiadas. De tal forma excessivas que tenho a plena consciência que dei muito pouco. Amor, faltou-me dar todo o amor possível a quem amei. É por este motivo que não quero soltar o corrimão, pois sei que quando o fizer e partir nesta viagem, não mais voltarei a esta casa, a esta vida. Não mais voltarei ao amor.

Matilde

Bruna… Mulher da vida – Capítulo V

Clarisse decidiu que Bruna teria a educação escolar de uma princesa e naquele fim de verão inscreveu a filha no melhor colégio de Lisboa. Desejava com todo o fervor que ela fosse independente – para não ter que aturar homem algum – e faria tudo o que estivesse ao seu alcance para o concretizar proporcionando-lhe caminhos diferentes, trilhos aliciantes, veredas sedutoras. Porém, foi no percurso que a levava à afamada escola que Bruna acabou por conhecer o grande e único amor da sua vida. Tomé trabalhava numa obra que decorria no prédio mesmo em frente ao colégio que amada frequentava. Tinha vinte e um anos e a pureza de um miúdo de dez. Era crédulo e ingénuo. A sua família, gente de poucas posses, não o tinha posto a estudar. Cedo começou a trabalhar e, parco em estudos, acabou por entrar na construção civil. Como ajudante de pedreiro não arranjava muito dinheiro, mas a sua vontade e empenho levaram-no rapidamente a subir na carreira. Certo é que aos vinte e poucos anos, era ele quem precisava de dois ajudantes, que muitas vezes não conseguiam dar vazão à rapidez e destreza do jovem. A vida da sua doente mãe, do seu pai e das suas duas irmãs melhorou significativamente quando Tomé passou a ser pedreiro. Agora havia um papo-seco inteiro para cada um e o chicharro já não tinha de ser dividido pelos cinco. Não pensem que é exagero. Quantas e quantas vezes, Tomé deixara de comer desejando que o feijão do jantar fosse suficiente para permitir aos outros membros da família não dormirem com fome. Dizia que os colegas lhe tinham enchido o bucho de chouriço, torresmos, pão e vinho, que se tinha consolado para duas semanas, que nem conseguia pensar em comida. As irmãs invejavam-lhe a sorte. Os pais fingiam acreditar.
A diferença de idades não era evidente, talvez pela jovialidade concedida ao moço pelos seus caracóis louros e desgrenhados, ou pelo brilho dos seus olhos esverdeados, ou pelo branco do seu sorriso. Era de facto um lindo rapaz, o Tomé. Muitas foram as trocas de olhares até ao dia em que ao ver Bruna a fugir da chuva, se encheu de coragem e atrevimento e, pegando no seu velho e polido casaco, correu direito a ela para lhe cobrir a cabeça até chegarem debaixo de uma varanda qualquer. E foi debaixo de uma varanda qualquer que deram o primeiro beijo, mesmo antes de saberem o nome um do outro, mesmo antes de trocarem uma palavra que fosse. Foi o primeiro beijo para ambos, e talvez por isso, foi doce, suave, lento e cheio de real ternura. Quando acabou, olharam-se fixamente e Tomé sorriu tão intensa e honestamente, que Bruna sentiu-se a recuperar a confiança nos sentimentos e na vida, que perdera quando Jerónimo a deixou. Recuperou, mas depressa viria a perdê-la.

Bruna… Mulher da vida – Capítulo IV

O chá correu muito bem, outra coisa não seria de esperar de algo que decorresse da vontade da Senhora Dona Zenilda, porém o momento foi pouco apreciado por Clarisse e Bruna que estavam realmente atordoadas com o motivo daquele convite: a leitura do testamento de Jerónimo. Tinham passado dois meses desde a sua morte. Era o dia de conhecer as suas derradeiras vontades. Clarisse, obrigou a filha a pentear o cabelo seis vezes antes de sair de casa. Era sempre assim. Para Clarisse as pessoas eram o que pareciam e tudo o que conseguissem obter nesta vida, estava proporcional e diretamente relacionado com o que traziam vestido e com a forma como sabiam, ou não, estar. Ela realmente não dava grande ênfase ao saber ser e fazer.  

Quando a mãe tocou à campainha da mansão da Senhora Dona Zenilda, Bruna sentia um tremor nervoso nas pernas, e, sem as conseguir controlar, mordeu o lábio inferior com raiva por não ter qualquer domínio sobre si mesma. Desde a morte de Jerónimo, Bruna tinha vindo a deparar-se com uma série de sensações completamente novas. Para ela, ainda que não tivesse uma consciência estruturada a respeito das suas emoções, isto não era de todo positivo porque a levava para um nível de desconforto que alimentava todas as suas maiores e mais profundas inseguranças. Entraram no hall e Joana fê-las passar para o acesso à sala de estar. Depois de olhar Bruna de alto a baixo e de constar a meninice ainda tão presente naquela jovem, informou-as que ia chamar a Senhora. Na sala já estavam algumas pessoas, na sua maioria perfeitas desconhecidas para Bruna e sua mãe. Ter-se-iam provavelmente cruzado no velório de Jerónimo, mas não faziam ideia de quem eram ou da sua relação com o falecido. Clarisse deteve-se na entrada da porta, esperando que a olhassem, aguardando a atenção dos presentes como se isso lhe conferisse maior importância. Ninguém as olhou. Deslizaram para dentro da sala e Bruna, ao contrário de sua mãe, rezava para que ninguém desse por elas. Foi precisamente assim que aconteceu pelo menos até determinado momento. Todos reunidos, o advogado da família e fiel depositário do testamento de Jerónimo, pediu que se sentassem. Não foi necessário solicitar que se calassem: estava um silêncio de cortar à faca.

A leitura terminou, depois de muitas contestações. Sim, porque aos ricos é-lhes permitido padecer de histerismo quando na origem da contenda está o dinheiro. Bruna seria a principal herdeira da fortuna de Jerónimo e à exceção da irmã e do cunhado do falecido, todos se insurgiram contra o veredicto. Mas eles não. Acreditavam que aquela gaiata era filha bastarda de Clarisse e Jerónimo. Ele nunca confirmara as suspeitas do casal, no entanto bem viam a afeição que nutria pela garota e, quando no leito de morte, os levou a jurar que cuidariam da sua menina, sentiram estar perante a prova que necessitavam. Entendiam assim, pois não viam para além de fatos, ocorrências carnais e coisas materiais. O sentimento que unia aqueles dois nada tinha a ver com uma ligação de sangue. Entre eles existia amor puro e descomprometido, só possível de acontecer entre almas e corações verdadeiramente sensíveis. Eles eram assim. Eram assim até a morte os separar.

E com tudo isto a vida de Bruna mudou. Honestamente o que mudou, foi a sua morada, a possibilidade de comprar mais algumas coisas e a atitude da mãe. Só Clarisse ficou imediatamente feliz com o que lhe trouxe a leitura daquele testamento. Não precisou de cinco minutos para se habituar à ideia. Saiu da casa de Zenilda uma outra pessoa, com tudo o que esta afirmação possa ter de negativo. A sua postura mudou radicalmente assim que se levantou da cadeira, o que fez propositadamente muitíssimo devagar, dando tempo para que todos pudessem ver atentamente que ela já não tinha necessidade de ter pressa. O seu porte endireitou, o tom de voz afinou, o olhar moderou e o nariz empinou. Para Bruna, até determinada altura, tudo isto era um disparate, chegando mesmo a sentir vergonha da vergonha da mãe em relação ao seu passado. Mais tarde viria a compreender e a defender tão cínica opção. Mas no princípio não pensava assim. Olhava para a mãe com tristeza quando esta desdenhava da D. Albina da pastelaria, que sempre as tinha tratado tão gentilmente. Chegara mesmo a dar um bolinho a Bruna, quando o patrão se ausentava para ir afogar as mágoas nos braços do jovem amante. Vicente, que sempre merecera todo o respeito de Clarisse, era o dono da casa com os melhores pasteis doces de Lisboa inteira. Ela idolatrava-o porque era proprietário de uma vivenda, ali para os lados da Ajuda, porque tinha criado duas filhas sozinho depois da mulher, grande rameira, lhe ter abalado com um reles jornalista, porque era católico praticante, porque vestia bem e a rigor, porque, porque, porque… tantas razões, que também serviam a Clarisse como justificação para a inveja e mentiras que as pessoas do bairro teimavam em espalhar. Clarisse não podia, nem queria acreditar. Alguma vez? Pois, mas a respeito deste fulano, enganava-se a mãe de Bruna redondamente, já que de sobra era verdade. Ele amava os homens. Nenhum em especial ou em particular. Era sempre de um homem só, mas durante muito pouco tempo. Gostava-os novos, jovens adultos, porque não os queria muito sabidos. Joana, a criada dos Almeida Brandão bem lhe sabia as taras porque se enrolara com João Luís, um pasteleiro de primeira viagem, que apesar de “gostar de mulheres”, cedera aos avanços do patrão em troca de algumas camisas novas e mais uma noite de folga por semana. Acabou por ficar com as camisas e com todo o tempo disponível para folgar, já que depois de devidamente usado por Vicente, acabou escorraçado do emprego e da cidade.

Vicente era o típico machista gingão e por isso nunca se considerou panasca, como a sua ex-mulher teimava em chamar-lhe. Nunca lhe contara, no entanto ela estranhava os meses que passavam, um após o outro, sem que ele a procurasse. Até que o apanhou em flagrante com um aprendiz de pasteleiro – não, não era o João Luís, mas outro rapaz com as mesmas intenções – altas horas da noite, na cave da sua casa de chá. Todas as dúvidas se desvaneceram, e, perante esta atroz alvura, os sonhos construídos assentes num casamento feliz, tombaram. Durante anos perpetuou na sua mente a imagem do seu marido debruçado a agarrar apaixonadamente o empregado, como se tivesse medo que ele lhe fugisse. Mas não o faria. Era uma relação consentida, pois Horácio vira no patrão um protetor. Como podem constatar, era habitual a classe trabalhadora envolver-se intimamente com os superiores hierárquicos, esperando obter alguns benefícios, regalias, ou até mesmo conseguir o lugar de amante fixo na vida de quem lhes pagava o ordenado. Como podem constatar, alguns conseguiam dar um bom fim às suas más intenções, fazendo cair em tentação homens pouco honestos e nada leais. Como podem constatar, a vida não mudou absolutamente nada nestes últimos quarenta anos.